Crônica: A relação da história, do presente e dos administradores públicos

Por Gastão Ponsi

Acordei com os acordes que pareciam desenhar o céu de São Borja em melodia: “São Borja, esplendor dos sete povos. Primeira da conquista Guarany. Enquanto o rio te embala em sua rede, escuta esta canção que eu fiz pra ti…”

Uma serenata inesperada que embalava a manhã como o próprio rio que beija a cidade em seu ritmo calmo.

O som trouxe memórias como folhas levadas pela correnteza do tempo. Voltei àquele dia em que a casa se encheu de vozes chilenas — estudantes de Direito, amigos de minha filha, que na época mergulhava na experiência única de um intercâmbio entre a Faculdade de Direito de Santa Maria e a Universidad Bernardo O’Higgins (UBO), em Santiago do Chile.

Aquela mistura de sotaques e risadas, traduzindo curiosidade e amizade, foi como um abraço da América Latina sob o teto da nossa residência.

Os dias que seguiram foram marcados por histórias compartilhadas e refeições transformadas em celebrações. É curioso pensar como a música e as lembranças sabem caminhar juntas, cruzando fronteiras e costurando o passado com o presente.

Fui buscar na rede mundial de computadores a música de Jorge Dornelles “Canção a São Borja”, mas com interpretação de José Lewis Bicca. Não encontrei…

Então, rememorei com um sorriso contido uma pergunta insólita que surgiu da boca de um dos jovens estudantes de Direito que visitavam minha casa naquela ocasião. “Tio Gastão, onde fica o Museu do Dr. Ovídio Batista da Silva? Quero visitar…”

A pergunta, tão espontânea quanto desavisada, ressoou como uma nota desafinada em meio à harmonia das conversas.

Ora, Ovídio Araújo Baptista da Silva, um dos maiores expoentes do Direito Processual Civil brasileiro, com mais de três décadas dedicadas a explorar as profundezas do Direito e suas nuances ideológicas.

Um jurista que, com elegância acadêmica, navegou os mares da coisa julgada, tutela e processo cautelar.

Mas, veja bem, um museu?

Os olhares deles brilhavam de entusiasmo, como quem espera encontrar, ao dobrar a esquina, o Louvre das jurisprudências.

Afinal, por que não imaginar que um homem com mais de trinta livros publicados, que frequentou os auditórios de Coimbra e Lima com a mesma naturalidade com que advogava em São Borja, não teria um templo próprio? Um salão sagrado para suas obras, com vitrines que narrassem sua jornada desde esta modesta cidade às mais altas cátedras?

Na época, desfiz a ilusão com delicadeza, quase relutante em interromper aquela fantasia juvenil: “Meu caro, o legado do Dr. Ovídio é um monumento intangível. Está nas prateleiras das bibliotecas e nas mentes dos que o estudam. Infelizmente, nenhum museu ainda lhe fez jus.”

Ah, mas confesso: por um momento, a ideia de um museu dedicado a ele soou, no mínimo, pitoresca.

E hoje, antes mesmo do sol ousar abrir os olhos, lá estava eu, embalado pelo ritual quase místico de um chimarrão solitário no escritório, decidindo embarcar em uma odisseia épica rumo ao passado de São Borja.

Armado com esperança e clicando furiosamente nas páginas oficiais do Município, imaginei encontrar um desfile digno de aplausos: uma linha do tempo dos ex-prefeitos.

Mas não!

Só lá estavam os de sempre – o atual e o anterior – acompanhados de uns poucos nomes jogados de maneira quase acidental.

Ah, claro!

Fotografias de “ex-intendentes” são inauguradas com pompa e circunstância.

Mas onde está a referência ao legado desses nomes no site oficial?

Alguém esqueceu de incluir na pauta a parte histórica.

Incrível!

Uma cidade que parece mais interessada em desfilar vaidade do que em organizar o passado.

Resultado?

Um constrangimento absoluto dominou a minha cena.

Bravo!

Palmas para a indiferença histórica!

Mas me atrevo a cogitar, com um certo sarcasmo nas entrelinhas: será que nossas autoridades sofrem de um peculiar “amnesia institucional”?

Quem sabe um leve toque de “fobia histórica”?

Que criativo, não?

Afinal, como sustentar o presente ou planejar o futuro se até mesmo o passado é jogado sob o tapete?

Que nome se dá a isso?

Ah, a “negação”, esse mecanismo de defesa tão requintado que parece ter sido adotado com entusiasmo por certos administradores públicos.

Afinal, por que preservar a história quando se pode soterrá-la sob camadas de esquecimento estratégico?

Imagino Freud observando essa façanha do além, intrigado pelo esforço em empurrar o “objeto” da negação – a ancestralidade – para o inconsciente coletivo, trancando-o com um cadeado de alienação.

Afinal, o passado é apenas um inconveniente, não é mesmo?

E de que adianta respeitar o que veio antes, quando se pode fingir que tudo começa no presente, isento de raízes e heranças?

Uma tragicomédia contemporânea em que o palco é tomado por protagonistas que renegam sua origem enquanto celebram a superficialidade.

Bravo aos negadores de suas raízes!

Palmas para a audácia de apagar o que deveria ser reconhecido.

Se o passado não pode servir de espelho, que escolha resta senão desfazê-lo?

Maicon Schlosser

Jornalista

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